O homem com ELA que se tornou símbolo da lei de eutanásia aprovada no Uruguai

O homem com ELA que se tornou símbolo da lei de eutanásia aprovada no Uruguai


Uruguai é primeiro país da América Latina a legalizar eutanásia
Pablo Salgueiro descobriu que seu corpo estava mudando por causa do dedão do pé.
O dedo não respondia, por mais que ele tentasse movê-lo, um sintoma que poderia parecer inofensivo, não fosse o histórico familiar dos Salgueiro, conta a filha Florencia, de 26 anos.
O pai e o irmão de Pablo haviam morrido de esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença que afeta os neurônios do cérebro, do tronco encefálico e da medula espinhal, responsáveis por controlar os músculos voluntários.
Pablo Salgueiro era professor de artes e foi diagnosticado com ELA em 2017
Cortesía de Florencia Salgueiro
Com a morte do pai, em 1991, e do irmão, em 2004, Pablo sabia que, quando os neurônios motores falham, o corpo perde progressivamente a capacidade de mover braços e pernas, até que o paciente perca a capacidade de tossir, engolir e, por fim, respirar.
A degeneração neurológica levou o pai e o irmão de Pablo a se submeterem a um procedimento cirúrgico chamado gastrostomia, uma incisão no abdômen para a introdução de uma sonda de alimentação diretamente no estômago.
Embora Pablo se submetesse a exames neurológicos anuais na esperança de obter um diagnóstico precoce de ELA, a confirmação médica só ocorreu em fevereiro de 2017, quando o dedão do pé deixou de responder.
Pablo tinha então 54 anos, e a filha Florencia, 22.
O avanço da doença levou Pablo a pedir aos médicos ajuda para morrer.
Mas a aprovação da lei da eutanásia só chegaria ao Uruguai em 15 de outubro de 2025, mais de cinco anos depois da morte de Pablo.
Florencia, segunda da esquerda para a direita, com a irmã, os pais e o mascote da família
Cortesía de Florencia Salgueiro
A vida sem ELA
Pablo era professor de arte. Durante 27 anos, dirigiu com a esposa, Rosina Rubio, um ateliê em Montevidéu que oferecia a crianças e adultos um espaço de criação com aquarela, tela, cerâmica e vidro.
Antes do diagnóstico de ELA, sua maior satisfação era testemunhar a “alegria” que despertava nos participantes de seus cursos de arte.
“Ver como a criança, ao terminar a aula, está relaxada, está feliz, independentemente do que tenha feito ou aprendido, é o mais incrível desse trabalho”, disse em entrevista ao canal de YouTube Mundo Bebé, em 2011, cercado por pinturas infantis e sentado ao lado da esposa, com pleno controle dos gestos e movimentos.
“Meu pai gostava de ficar tranquilo em casa, passear com o cachorro, descer até a praia, ver o pôr do sol”, conta Florencia, por telefone, de Montevidéu.
“Ele gostava muito de ler, gostava de história e de conversar, às vezes, sobre política.”
Pablo Salgueiro com a esposa, Rosina Rubio
Cortesía de Florencia Salgueiro
Tentativas de adaptação
Embora Pablo soubesse dos estragos que seu corpo sofreria, a partir das experiências do pai e do irmão, Florencia afirma que ele tentou encontrar maneiras de tornar mais fácil, para si e para a família, a convivência com as fases da ELA.
“Ele não se rendeu à doença no início. Ele realmente tentou se adaptar e viver com ela.”
Uma das primeiras iniciativas de Pablo foi construir uma rampa de acesso na casa de veraneio que fez para a família em Los Titanes, balneário situado 65 km a leste de Montevidéu.
“Meu pai fez essa rampa para poder usá-la, já sabendo que teria dificuldades de locomoção e que a medicina não tinha muito a oferecer.”
Nenhum tratamento impediu que Pablo perdesse, pouco a pouco, a capacidade de se mover sozinho.
“Primeiro, foi o pé. Depois, ele começou a ter dificuldade para ficar em pé por muito tempo e, em seguida, para andar. Começou a caminhar com bengala, depois com duas muletas, em seguida com um andador, até que não foi mais possível.”
Florencia explica que a ELA tem “picos”, ou seja, “momentos de estabilidade e momentos em que as capacidades se perdem de forma mais evidente”.
“Havia semanas ou meses em que tudo parecia estar bem. Mas, de repente, as dificuldades foram avançando das pernas para as mãos.”
Enquanto tomavam café da manhã ou Pablo se preparava para ler, Florencia percebia que o pai perdia a força para levantar objetos pesados e a coordenação motora fina necessária para segurar um lápis e fazer anotações do que lia em seus livros.
“Com as duas mãos ele conseguia, por exemplo, segurar um copo com cuidado, desde que não fosse muito pesado. Então, dávamos a ele copos de plástico, mas não de vidro.”
Pablo Salgueiro em um almoço com as filhas
Cortesía de Florencia Salgueiro
‘Você quer se suicidar?’
Como a ELA não tem cura, Pablo recorreu a alternativas fora da medicina tradicional em busca de alívio para os sintomas e para, de alguma forma, conter o avanço da doença.
“Meu pai tentou qualquer terapia que você possa imaginar, desde dieta macrobiótica até acupuntura egípcia, como uma maneira de manter um fiozinho de esperança diante da situação.”
Às vezes, Florencia se opunha aos planos do pai, como quando ele adotou uma dieta baseada em verduras e cereais integrais, em vez de gorduras e proteínas que poderiam fornecer mais calorias ao corpo, como recomendavam os médicos.
“Eu ficava muito brava com meu pai quando ele tomava decisões que eu não entendia”, admite Florencia. “Perguntava: ‘Mas o que você está fazendo? Está acelerando a doença?’.”
Durante a fase da dieta macrobiótica, as discussões foram difíceis para os dois. Ao ver o pai emagrecer e se recusar a comer alimentos que poderiam fortalecê-lo, Florencia o confrontou: “Me diga a verdade. Você quer se suicidar?”.
“Não, é o contrário. O que eu quero é manter a esperança de que pode existir uma cura”, lembra-se ela de ouvir o pai responder.
“E a esperança eu vou buscar onde me parecer certo. E, se pra você isso não faz sentido, não me importa, porque sou eu que estou escolhendo, sou adulto e faço o que quero com o meu corpo”, repete Florencia, como se ainda escutasse a voz dele.
Florencia Salgueiro se revezava com a irmã nas aplicações noturnas de injeções de morfina no pai
Cortesía de Florencia Salgueiro
Acompanhar sem ultrapassar limites
Florencia percebeu que um dos maiores desafios era acompanhar o pai no curso da doença sem invadir seu espaço pessoal.
Quando Pablo manuseava o celular com dificuldade, ela esperava que ele concluísse a tarefa, com paciência e calma.
Quando ele já não conseguia virar a página de um livro, ela ponderava com cuidado se era o caso de oferecer ajuda.
“Era muito doloroso aceitar que ele já não conseguia fazer certas coisas. Tentávamos evitar tornar isso explícito, como dizer: ‘Você não pode mais ler, então a gente lê pra você’. Não é fácil acompanhar sem ultrapassar limites, porque meu pai era um homem jovem e estava lúcido.
“Às vezes, ele se irritava ou se frustrava, e demonstrava isso”, conta Florencia, com a voz embargada. “É uma doença muito cruel.”
Pablo não apenas emagreceu e perdeu a estatura do 1,86m que tinha. Também perdeu o tônus e a flexibilidade dos músculos do rosto, até já não conseguir tossir para expelir o muco que se acumulava nos pulmões.
“Foi aí que tudo começou a se complicar”, explica Florencia.
Já haviam se passado quase três anos desde o diagnóstico de ELA.
Florencia Salgueiro mostra fotos do pai de quando ela era criança
Cortesía de Florencia Salgueiro
Uma conversa na sala de estar
Em dezembro de 2019, Florencia, a mãe e a irmã começaram a notar que Pablo se engasgava durante a noite.
“Mesmo que nós o ajudássemos a sentar e déssemos tapinhas em suas costas, ele precisava de força, e essa força meu pai já não tinha.”
A família comprou um BiPAP, aparelho de ventilação mecânica usado no tratamento da apneia do sono, que o ajudaria a respirar quando o corpo já não conseguisse eliminar as secreções.
Mas Pablo chegou a um ponto de exaustão em que não teve alternativa senão aceitar os cuidados paliativos.
“Ele resistia a isso porque sentia que era como se render”, explica Florencia, ao destacar que não pode responder pelas decisões do pai.
Ele passou a receber medicamentos para diluir as secreções e doses de morfina, chamadas pela família de “resgates”, para aliviar as crises de pânico e a sensação de sufocamento que o tomava à noite.
Durante quase dois meses, Florencia e a irmã se revezaram na aplicação das doses.
Embora Pablo tenha se estabilizado por um tempo, chegou a precisar de até oito “resgates” por noite.
Florencia conta que o pai reuniu a esposa e as duas filhas na sala de casa e disse: “Não quero mais. Isto já não é vida. Estou sofrendo quando durmo, sofrendo quando estou acordado. Já sei como isso termina, vi acontecer com meu pai e meu irmão. Não me interessa o que vem daqui pra frente. O que eu tinha pra viver, já vivi. Quero morrer.”
Florencia gostaria de ter respondido com um argumento de esperança, mas sabia que estava diante de um homem lúcido, que havia refletido sobre cada palavra.
Ao discutir as alternativas com a família, Pablo insistiu em poupá-las de qualquer responsabilidade sobre a decisão que havia tomado.
“Ele sempre deixou muito claro que não queria que tomássemos ações diretas sobre sua morte. Queria que fossem os médicos, porque não queria que levássemos em nossa consciência que havíamos provocado sua morte.”
‘Estou pedindo ajuda’
Pablo procurou os médicos pedindo que colocassem fim ao sofrimento e o ajudassem a morrer.
“O que o senhor está pedindo é ilegal”, lhe responderam os médicos, segundo lembra Florencia.
O pai dela “ficou furioso” e insistiu: “O que vocês estão me oferecendo como opção é parar de comer e de beber água. É a única coisa que posso fazer sozinho. Se eu pudesse segurar uma faca, não estaria pedindo nada a vocês. Mas não posso, e estou pedindo ajuda, e vocês estão me negando.”
Diferentemente do pai e do irmão, Pablo se recusou a se submeter a uma gastrostomia.
Os médicos tentaram aliviar sua dor até que, finalmente, ele recebeu sedação paliativa, quando apresentou sintomas refratários, isto é, que já não podiam ser tratados com medicamentos e lhe causavam intenso sofrimento, como o sufocamento ao tentar respirar.
“Foi muita impotência, uma tortura para ele e para nós”, afirma Florencia.
Pablo Salgueiro morreu em 19 de março de 2020.
A família de Pablo Salgueiro construiu, no balneário Los Titanes, um barco transformado em parquinho que leva o nome dele
Cortesía de la cuenta @proyecto_pablo en IG
A lei da eutanásia
Uma das últimas mensagens de WhatsApp que Pablo enviou a Florencia continha um link com a notícia de que o deputado Ope Pasquet havia apresentado ao Congresso do Uruguai um projeto de lei em favor da eutanásia.
Em março de 2021, ao completar um ano da morte do pai, Florencia publicou um fio no Twitter (plataforma que atualmente se chama X) em que contava a história de Pablo e explicava suas razões para defender a morte assistida.
Desde então, passou a receber todo tipo de mensagem nas redes sociais, de familiares de pacientes com ELA que se identificavam com sua experiência a usuários contrários à eutanásia, convictos de que só Deus pode dar e tirar a vida.
“Nas discussões sobre eutanásia, o que me irrita é o paternalismo em relação aos doentes, essa ideia de que não sabem o que querem”, diz Florencia. “Meu pai sabia exatamente o que queria. Ele lutou para manter a esperança.”
Florencia Salgueiro, vestida de laranja, comemora com a mãe e outros integrantes do grupo Empatía Uruguay a aprovação da lei de eutanásia no Congresso uruguaio
Reuters
Mergulhada no luto, Florencia recebeu pelas redes sociais a mensagem de um desconhecido que a convidava a participar do grupo Empatía Uruguay, organização criada por familiares de pacientes com doenças crônicas, como a ELA, em defesa do direito à eutanásia.
“Aceitei me unir a eles e desde então atuo como porta-voz.”
Acompanhada da mãe e da irmã, Florencia compareceu à sessão parlamentar que se estendeu por dez horas, na quarta-feira, 15 de outubro, em que o Senado uruguaio aprovou a lei da eutanásia — projeto de lei Muerte digna (Morte digna, na tradução para o português). Segundo a consultoria Cifra, 62% dos uruguaios eram favoráveis a essa lei.
O texto aprovado autoriza que adultos mentalmente capazes, em fase terminal de uma doença incurável ou irreversível, ou submetidos a sofrimento intolerável, possam optar pela eutanásia, a ser realizada por um profissional de saúde.
Exausta após o longo debate no Parlamento e as inúmeras entrevistas concedidas a jornalistas, Florencia Salgueiro diz sentir-se satisfeita.
“Só quero que outras famílias não passem pelo que nós passamos.”
Ela se emociona ao pensar no que o pai diria se soubesse do papel que ela teve na campanha pela aprovação da lei.
“Tomara que ele esteja orgulhoso.”
No Brasil, qualquer forma de eutanásia é proibida. Ajudar uma pessoa a morrer, mesmo que por vontade dela, é crime com pena de prisão.
O que é permitido, desde 2006, por uma resolução do Conselho Federal de Medicina, é uma prática chamada ortotanásia. Ou seja, médicos podem interromper o tratamento de um paciente terminal se isso for da vontade dele.
Causas e sintomas da ELA
A esclerose lateral amiotrófica é uma doença progressiva para a qual não há cura. É uma das principais doenças neurodegenerativas ao lado do Parkinson e do Alzheimer.
Ocorre quando os neurônios dos pacientes acometidos pela doença se desgastam ou morrem e já não conseguem mais mandar mensagens aos músculos.
Isso gera a curto e médio prazo enfraquecimento dos músculos, contrações involuntárias e incapacidade de mover os braços, as pernas e o corpo.
A ELA geralmente começa com espasmos musculares e fraqueza em um braço ou perna, dificuldade para engolir ou fala arrastada, mas à medida que progride, afeta profundamente a capacidade de se mover, falar e até respirar.
Os motivos que levam as pessoas a desenvolver ELA são complexos. A idade é o fator preditor mais importante para a sua ocorrência, sendo mais prevalente nos pacientes entre 55 e 75 anos, segundo o Ministério da Saúde do Brasil.
Mas para 10-15% das pessoas que sofrem desta condição, a causa é familiar. Nestes casos, uma mutação em um gene específico teria sido transmitida ao longo das gerações.
Não se sabe ao certo se você irá desenvolver a doença se um dos seus pais ou ancestrais tiver sofrido de ELA, mas pode haver histórias na família das pessoas afetadas sobre uma prima ou um avô que também tiveram uma doença devastadora.
Ocorre que, quando alguém desenvolve ELA hereditária, o gene afetado nem sempre é o mesmo, ainda que as consequências sejam idênticas. E ainda há os 85-90% das pessoas que desenvolvem a forma não hereditária de ELA – para elas, identificar a causa da condição é ainda mais difícil.
Dependendo do tipo de ELA, “a doença pode ser explicada por fatores genéticos em apenas cerca de 8% a 60%”, segundo a professora de neurologia Eva Feldman, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
Quando uma pessoa é diagnosticada com ELA e ninguém da família diz algo como “seu tio-avô teve algo parecido com isso”, o caso é considerado um evento aleatório único, ou “esporádico”.
Pesquisas recentes indicam que mutações genéticas podem ser parte das causas. Mas elas provavelmente envolvem pequenas mudanças em alguns genes diferentes e não os erros biológicos drásticos e óbvios observados na ELA familiar.
A morte, em geral, ocorre entre três e cinco anos após o diagnóstico. Cerca de 25% dos pacientes sobrevivem por mais de cinco anos.
O físico britânico Stephen Hawking, morto em 2018, foi um dos mais conhecidos portadores da ELA.
Os sintomas normalmente começam a aparecer após os 50 anos, mas também podem surgir em pessoas mais novas. Segundo o Ministério da Saúde brasileiro, os sintomas da esclerose lateral amiotrófica são:
Perda gradual de força e coordenação muscular;
Incapacidade de realizar tarefas rotineiras, como subir escadas, andar e levantar;
Dificuldades para respirar e engolir;
Engasgar com facilidade;
Babar;
Gagueira (disfemia);
Cabeça caída;
Cãibras musculares;
Contrações musculares;
Problemas de dicção, como um padrão de fala lento ou anormal (arrastando as palavras);
Alterações da voz, rouquidão;
Perda de peso.

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