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Nova diretriz da Academia Brasileira de Neurologia alerta para dependência de zolpidem e determina como desmame deve ser feito

por Redação


Desmame de Zolpidem: pacientes relatam sintomas de abstinência ao suspenderem remédio
Por quase três décadas, o zolpidem foi vendido como o comprimido da noite perfeita. Bastava engolir o remédio minutos antes de deitar, e o sono vinha rápido, profundo e restaurador — ou, pelo menos, era o que prometiam as bulas e campanhas médicas.
Mas o que começou como solução para a insônia virou um problema de saúde pública: o uso indiscriminado do medicamento e de seus semelhantes — as chamadas drogas Z — tem provocado dependência química, crises de abstinência e até delírios em pacientes que, muitas vezes, começaram o tratamento sem saber dos riscos.
O alerta vem agora em forma de diretriz clínica nacional, publicada pela Academia Brasileira de Neurologia (ABN) e assinada por 15 especialistas de universidades como USP, Unifesp, Unicamp, UFPE e UFMG.
O documento, lançado na terça-feira (4) na revista Arquivos de Neuro-Psiquiatria, é o primeiro consenso brasileiro sobre abuso, dependência e manejo seguro das drogas Z, que incluem o zolpidem, a zopiclona e a eszopiclona.
“Nosso intuito não é demonizar o zolpidem, mas contextualizar seu uso”, resume o neurologista Alan Éckeli, professor da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto e um dos autores da diretriz. “Ele é eficaz quando bem indicado, mas hoje o abuso se tornou um problema de saúde pública.”
Boom de consumo e casos de abuso
As drogas Z foram criadas nos anos 1990 como substitutas “mais seguras” dos benzodiazepínicos (como diazepam e clonazepam). Com ação rápida e curta, pareciam ideais para tratar insônia ocasional, sem provocar sonolência no dia seguinte.
A promessa, no entanto, não resistiu à prática clínica. No Brasil, as vendas de zolpidem mais do que dobraram entre 2014 e 2021 — de 338 mil para 810 mil caixas — e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) registrou uso irregular crescente, inclusive com receitas falsificadas e compra ilegal em farmácias virtuais.
“Há pacientes tomando 30, 40, 50 mg por noite, quando o máximo recomendado é 10 mg. Esse aumento progressivo da dose é um sinal claro de tolerância e dependência”, explica Fernando Stelzer, neurologista da USP e autor principal do estudo.
A Anvisa endureceu as regras em 2024, exigindo receita digital e controle eletrônico, mas os especialistas dizem que o impacto ainda é limitado.
“O problema se consolidou durante a pandemia, quando a ansiedade e o isolamento aumentaram a prescrição. Agora estamos colhendo os efeitos”, acrescenta Stelzer.

Reprodução/TV Globo
A dependência que o sono esconde
A diretriz da ABN descreve um quadro típico: pacientes que começaram com uma dose pequena e, com o tempo, passaram a precisar de quantidades cada vez maiores para dormir.
Em muitos casos, surgem comportamentos automáticos — como dirigir, cozinhar ou comer dormindo — além de amnésia e episódios de delírio noturno.
O zolpidem tem meia-vida curta, ou seja, é absorvido rapidamente pelo organismo e perde o efeito em poucas horas — em média, quatro. Esse metabolismo acelerado faz com que o corpo se acostume rapidamente, e o usuário acabe aumentando a dose para tentar reproduzir o efeito inicial. Quanto menor a meia-vida de um medicamento, maior tende a ser o seu potencial de dependência.
Nos casos mais graves, a suspensão abrupta do medicamento pode causar crises epilépticas, ansiedade intensa, insônia rebote e até ideias suicidas.
O documento alerta que nenhuma droga Z é isenta de risco. Embora o zolpidem concentre a maioria dos casos, zopiclona e eszopiclona também foram associadas a abuso e dependência.
“O uso prolongado — por mais de quatro semanas — já é considerado fator de risco”, explica Éckeli. “Isso vale inclusive para quem segue doses aparentemente seguras. O corpo se adapta, e o cérebro passa a precisar da substância para iniciar o sono.”
O que a nova diretriz recomenda
A diretriz propõe um protocolo inédito de desprescrição (retirada gradual) das drogas Z, com seis pilares principais:
Avaliação ampla antes da retirada — incluindo histórico psiquiátrico, uso de outras substâncias e gravidade da dependência.
Redução progressiva das doses, jamais suspensão abrupta.
Terapia cognitivo-comportamental para insônia (CBT-I) como tratamento de primeira linha.
Uso opcional de medicamentos de apoio (como trazodona, antidepressivos sedativos, quetiapina, pregabalina ou ramelteon).
Evitar benzodiazepínicos de ação curta e melatonina de liberação imediata.
Internação breve para casos de dependência grave ou risco de convulsão.
Éckeli destaca que a maior mudança de paradigma é o que ele chama de “prescrição com data de saída”:
“O plano de retirada precisa começar no primeiro dia da prescrição. O médico deve explicar ao paciente que o medicamento é temporário e que haverá acompanhamento para reduzir e suspender o uso.”

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Terapias não medicamentosas ganham força
Entre as 29 perguntas científicas analisadas pelo grupo, a que apresentou maior nível de evidência (nível 2) foi a que avaliou a eficácia da terapia cognitivo-comportamental (CBT-I) para reduzir o uso de drogas Z.
Essa abordagem, baseada em mudanças de hábitos, regulação do horário de sono e controle de pensamentos ansiosos, se mostrou mais eficaz do que medicamentos a longo prazo.
“A insônia ainda é tratada como sintoma, não como doença. É um erro cultural”, afirma Éckeli. “O hipnótico deveria ser apenas um recurso de transição. A terapia comportamental é o que realmente muda o padrão do sono.”
Risco aumentado entre mulheres e profissionais de saúde
Segundo a diretriz, mulheres adultas, profissionais da área da saúde e pessoas com doenças mentais prévias são os grupos mais vulneráveis ao abuso.
Há também uma relação direta com transtornos de ansiedade, depressão e uso de álcool ou analgésicos opióides.
Embora o consumo seja maior na rede privada, a diretriz alerta para a expansão do uso no Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente entre idosos e pessoas com transtornos psiquiátricos.
“É urgente treinar médicos da atenção primária para reconhecer os sinais precoces de dependência e planejar a descontinuação segura”, afirma Éckeli.
Ele ressalta que falta formação em medicina do sono nas faculdades brasileiras — o que leva muitos profissionais a prescrever hipnóticos de forma automática, sem considerar alternativas não farmacológicas.
Nova cultura do sono
O grupo da ABN espera que o documento sirva como referência para políticas públicas e atualização curricular, além de orientar médicos de todas as especialidades.
“Não se trata de proibir o zolpidem, mas de educar sobre seu uso racional”, diz Stelzer. “Assim como aprendemos a prescrever antibióticos com responsabilidade, precisamos fazer o mesmo com os remédios do sono.”

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