Quando a Reforma da Previdência foi aprovada, em 2019, o discurso era sedutor: equilíbrio fiscal, fim de privilégios, sustentabilidade do sistema. Tudo parecia inevitável, técnico e racional. Mas uma pergunta ficou no ar e poucos se atreveram a respondê-la com franqueza: quem pagaria essa conta?
Quatro anos depois, a resposta está dada. Foram os trabalhadores que já tinham pagado com décadas de contribuição e sacrifício silencioso.
De quase aposentados a presos em regras de transição
A regra que eliminou a aposentadoria por tempo de contribuição sem idade mínima virou símbolo do desequilíbrio causado pela Reforma. Segurados com 30, 35 anos de contribuição viram seu planejamento ser rasgado. Muitos tiveram que continuar trabalhando, mesmo adoecidos, só para atingir o novo marco: a idade mínima ou o chamado “pedágio”.
As mudanças atingiram em cheio quem não tinha margem de escolha: trabalhadores braçais, servidores públicos de baixa renda, mulheres que começaram a trabalhar cedo e homens em atividades extenuantes.
O discurso técnico não alcança o chão da fábrica
Planilhas, projeções e cálculos atuariais não enxergam a pele marcada de quem passou a vida carregando peso, exposto a ruído, poeira, calor e pressão. É fácil falar de déficit quando se está atrás de uma mesa. Difícil é encarar o olhar de quem contribuiu todos os meses esperando por dignidade — e recebe um benefício que não cobre sequer o básico.
A sustentabilidade, nesses moldes, veio acompanhada de um desequilíbrio social e jurídico profundo. Direitos antes protegidos por jurisprudência e tradição previdenciária foram substituídos por regras de transição que mais punem do que protegem.
E agora? O STF pode reequilibrar essa balança
O Supremo Tribunal Federal está diante de julgamentos que podem corrigir algumas das distorções da Reforma. Entre os temas em análise estão:
- A conversão de tempo especial (insalubre ou perigoso) em tempo comum, que foi vetada pela EC 103;
- A constitucionalidade da idade mínima imposta para quem já estava próximo de se aposentar;
- A nova fórmula de cálculo dos benefícios por incapacidade permanente.
Se houver entendimento favorável aos segurados, poderemos assistir a um redesenho parcial das regras atuais, reabrindo portas para revisões e até novas concessões mais justas.
Reflexão final: a conta que não fecha é a da dignidade
A Reforma pode até ter ajudado a prolongar a vida financeira do sistema, mas não pode durar à custa da dignidade de quem mais precisa da Previdência. O Direito Previdenciário é, antes de tudo, um direito humano, social, garantido na Constituição para proteger o trabalhador nos momentos em que ele mais é vulnerável.
E quando a técnica desconsidera a humanidade, é papel da advocacia, da sociedade e das instituições buscar o equilíbrio. Porque números podem ser ajustados — vidas, não.
Ingrid Dialhane é advogada especialista em Direito Previdenciário, com atuação na defesa de segurados do INSS e servidores públicos.
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