Depois do isolamento forçado da pandemia, a solidão é cada vez mais tema de livros, vídeos e podcasts. Com cada vez mais pessoas morando sozinhas, como transformar a solidão em oportunidade de crescimento? Uma nova onda de livros defende que passar tempo sozinho e aproveitar ao máximo sua condição de solteiro pode ser realizador
SHK/ Hamburger Kunsthalle/ bpk. Foto: Elke Walford
O personagem principal do recente filme Dias Perfeitos, do diretor Wim Wenders, é um limpador de banheiros de Tóquio, no Japão. Ele passa horas sozinho, regando plantas, pensando, ouvindo música e lendo.
Outros personagens surgem com o desenrolar do filme, mas seus momentos iniciais, para muitos espectadores, são simplesmente perfeitos.
Descrito pelo crítico de cinema da BBC Nicholas Barber como uma “meditação em forma de documentário sobre a serenidade de uma existência restrita aos seus pontos essenciais”, o filme realmente despertou interesse.
Sem dúvida, visões positivas e ponderadas sobre a solidão vêm ocupando cada vez mais espaço nas nossas telas, prateleiras e smartphones. Elas estão presentes em toda parte, desde podcasts até vídeos virais no TikTok.
Aparentemente, nunca houve uma época melhor para ficar sozinho.
Nos últimos dois anos, foram lançados diversos livros sobre o assunto — e outros ainda estão em preparação.
Solitude: The Science and Power of Being Alone (“Solidão: a ciência e o poder de ficar sozinho”, em tradução livre) e Solo: Building a Remarkable Life of Your Own (“Solo: construindo uma vida significativa sozinho”), por exemplo, chegaram às livrarias em 2024.
O livro Single: Living a Complete Life on Your Own Terms (“Solteiro: vivendo uma vida completa à sua maneira”), da jornalista e escritora britânica Nicola Slawson, foi publicado em fevereiro. E o mês de maio presenciou o lançamento do esperado romance Table for One (“Mesa para um”), de outra escritora britânica, Emma Gannon.
Gannon ganhou fama com seus livros de não ficção, que questionam noções tradicionais de sucesso e produtividade. Agora, ela reavalia os relacionamentos modernos, com a história de amor de uma jovem que conhece a alegria de ficar sozinha, sem ter um parceiro.
O filme Dias Perfeitos, de Wim Wenders, recebeu elogios pelo seu estudo meditativo da existência solitária, mas plena, do seu personagem principal
NEON
Ainda este ano, serão publicadas mais duas obras de autoajuda: The Joy of Solitude: How to Reconnect with Yourself in an Overconnected World (A alegria da solidão: como se reconectar consigo mesmo em um mundo superconectado) e The Joy of Sleeping Alone (A alegria de dormir sozinho).
Também está para sair uma tradução em inglês do livro Alone: Reflections on Solitary Living (“Sozinho: reflexões sobre a vida solitária”), de Daniel Schreiber, originalmente publicado na Alemanha em 2023.
Mudança de atitude
Repleta de dicas úteis e observações fascinantes, esta nova onda de livros em inglês pretende não apenas desestigmatizar a solidão, mas também defender seus benefícios e prazeres.
Este fluxo poderoso de publicações pode ser surpreendente à primeira vista, para qualquer pessoa que tenha atravessado a pandemia de covid-19 e, inevitavelmente, ouvido falar ou sofrido o amargo sabor da “epidemia de solidão”.
Esta expressão foi popularizada em 2023, pelo então cirurgião-geral dos Estados Unidos, Vivek Murthy.
“Depois da pandemia, houve um enorme interesse pela solidão, por excelentes motivos”, afirma o professor de psicologia Robert Coplan, da Universidade Carleton de Ottawa, no Canadá. Ele é o autor do livro The Joy of Solitude: How to Reconnect with Yourself in an Overconnected World, mencionado acima.
Mas ele destaca que, com as preocupações sobre os efeitos do isolamento, a solidão acabou ficando “meio indesejada — como se jogássemos o bebê fora junto com a água do banho, por assim dizer”.
Mas, agora, o discurso defende a correção do curso.
Coplan destaca que é importante fazer a distinção entre solidão e isolamento. E muitos escritores expressam este mesmo sentimento.
“O isolamento é um problema sério e prejudicial para algumas pessoas. Mas é um estado subjetivo, muito diferente da solidão, que as pessoas escolhem [ativamente] por razões positivas”, explica a jornalista Heather Hansen.
Em 2024, Hansen foi uma das autoras do livro Solitude: The Science and Power of Being Alone (também indicado acima), ao lado de Netta Weinstein e Thuy-vy T. Nguyen.
Ela havia acompanhado os meios de comunicação nos dizendo que ficamos muito isolados por algum tempo. Mas o outro lado desta narrativa, segundo Hansen, é que “as pessoas estão refletindo sobre suas próprias vidas e reconhecendo que estão escolhendo a solidão por diversas razões benéficas para elas”.
A reavaliação dos jovens
“Minha teoria é que, desde a pandemia, conseguimos entender claramente a diferença entre o isolamento e a solidão por escolha”, explica Emma Gannon. Ela também defende o slow living, ou manter a vida em ritmo mais lento.
Os extremos da pandemia, quando ficamos trancados em casa com nossos entes queridos ou passamos meses sem mantermos contato humano, nos prepararam, segundo Gannon, “para estabelecer diálogos equilibrados sobre a diferença entre o isolamento e a alegria de termos tempo sozinhos”.
Estes diálogos incluem oportunamente a reavaliação dos relacionamentos amorosos pelos millennials e jovens da geração Z (os nascidos entre 1981 e 1995 e entre 1995 e 2010, respectivamente) — e também uma redefinição cuidadosa das relações interpessoais em geral.
O novo romance de Gannon pode ser uma ilustração fictícia de uma jovem que investe em um relacionamento consigo própria. Mas ele irá chamar a atenção de muitos leitores que enfrentam as expectativas sociais de “se estabelecer”, consideradas cada vez mais antiquadas.
Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos em 2023 indicou que dois em cada cinco jovens millennials e da geração Z acreditam que o casamento é uma tradição ultrapassada. E, no Reino Unido, apenas pouco mais da metade dos homens e mulheres da geração Z deve se casar, segundo o Escritório Nacional de Estatísticas do país.
O famoso quadro Caminhante Sobre o Mar de Névoa (c.1817), do pintor alemão Caspar David Friedrich (1774-1840), captura a beleza da solidão
SHK/ Hamburger Kunsthalle/ bpk. Foto: Elke Walford
Em abril, houve um vídeo que viralizou no TikTok, com mais de um milhão de curtidas e cerca de 37 mil comentários. Ele mostrava o ponto de vista de um homem sobre namorar mulheres que moram sozinhas e gostam de viver desta forma.
Muitas mulheres consideraram que a análise acertou “em cheio” e se identificaram entusiasticamente.
O livro de Nicola Swanson, Single: Living a Complete Life on Your Own Terms, é baseado no seu popular boletim publicado na plataforma Substack, The Single Supplement. Ela não se surpreende com a reação das mulheres.
“O número de pessoas que vivem sozinhas no Reino Unido vem crescendo de forma estável na última década, mais ou menos”, destaca ela.
Esta situação alimenta uma mudança cultural rumo à aceitação das pessoas solteiras, com foco na “liberdade, independência e, especialmente, na rejeição da vida doméstica, já que as mulheres estão percebendo que não precisam aceitar o que talvez fosse esperado para elas nas gerações anteriores”.
Dito isso, nossa fascinação cultural pela solidão tem raízes profundas. Capturar a beleza da solidão é o foco de inúmeros artistas ao longo dos séculos.
Um deles é o pintor romântico alemão Caspar David Friedrich (1774-1840). Seus grandes trabalhos incluem o quadro Caminhante Sobre o Mar de Névoa (c.1817), que pode ser observado na coleção do museu de arte Hamburger Kunsthalle, na Alemanha.
Outro destes artistas é o reverenciado pintor americano Edward Hopper (1882-1967), com suas pinturas de moradores de rua solitários.
Uma crítica da revista The New Yorker sobre a retrospectiva de Hopper exibida em 2022 no museu Whitney em Nova York, nos Estados Unidos, destacou que “tudo o que rodeia a vida urbana mostrada por ele é isolado, incomum — e, ainda assim, suas imagens de aparente isolamento não parecem nada sombrias, mas sim orgulhosamente autoconfiantes.”
Daniel Schreiber acredita que a correlação entre as pessoas que moram sozinhas, sem que tenham um parceiro, e o isolamento foi tradicionalmente supervalorizado.
“A sociedade, agora, compreende melhor que o amor romântico não é o único modelo para orientar nossa vida, nem algo que se precise desejar”, explica ele. “Existem diferentes formas de vida e não é tão necessário estar em um relacionamento amoroso tradicional”.
‘Acordo comercial’
O professor de marketing e psicologia Peter McGraw, da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, defende com gosto um ponto similar no livro Solo: Building a Remarkable Life of Your Own. O professor define a si próprio como “solteirão”.
“Existem muitos mitos sobre viver solteiro”, explica ele, “e uma falta de compreensão dos motivos que levaram à invenção do casamento — principalmente como acordo comercial.”
“Sinceramente, a mensagem das comédias românticas, das canções de amor e dos romances de Jane Austen [de que precisamos de um parceiro para sermos completos] não é confirmada pelos dados longitudinais.”
Muitos estudos mencionados no livro Solo demonstram que, mesmo que a felicidade pessoal atinja seu pico com o casamento, ela não dura muito tempo.
Até em um relacionamento, é possível alterar as rotinas tradicionais para permitir mais tempo sozinho, como defende o livro The Joy of Sleeping Alone. Sua autora é a professora de ioga e meditação Cynthia Zak.
Ela percebeu que muitas mulheres preferem dormir sozinhas, em vez de ocuparem a mesma cama que seus parceiros. Ela decidiu escrever o livro, originalmente em espanhol, para defender “mais espaço para expressar nossas necessidades e sentimentos, mais oportunidades para nos livrarmos dos temores e crenças limitadoras e mais liberdade de escolha”.
Como ficar bem sozinho
Se ficar e fazer tudo sozinho é cada vez mais comum e desestigmatizado, como aproveitar ao máximo esta situação?
Existe um consenso sobre dois fatores importantes: é preciso encontrar um equilíbrio saudável entre o tempo sozinho e a comunicação com os demais e ter a capacidade de escolher a solidão, em vez ser forçado a vivenciá-la.
“A maior indicação de sucesso no tempo sozinho é a pessoa escolher aquele espaço, acreditando que existe ali algo importante e significativo”, segundo Heather Hansen. Ela destaca que a solidão é uma “bolha neutra de argila para esculpir, que pode ser qualquer coisa que modelarmos”.
McGraw explica corretamente que o melhor talvez não seja moldar essa bolha como “deitar na cama, usar vapes e pedir comida pelo delivery”.
Ele sugere canalizar o tempo passado sozinho em buscas criativas e passatempos que tendam a florescer na solidão: caminhadas ou corridas, observar as pessoas em uma cafeteria, visitar um museu e “absorver tudo, na rapidez ou lentidão que você puder”.
Que tal “se sentar na banheira ouvindo Vivaldi”, como ele sugere especificamente, ou fazer um curso online?
A escritora Emma Gannon celebra a vida solo no seu novo romance Table For One
Paul Storrie
Para os solteiros, é aconselhável abraçar uma solidão que pode ser bem sucedida, em vez de esperar que ela acabe, segundo Nicola Slawson.
“Eu costumava adiar as coisas até que eu ‘me estabelecesse’ ou encontrasse um parceiro, mas é preciso viver a vida que você tem e extrair dela o máximo de felicidade possível, em vez de se sentir em uma sala de espera, aguardando sua vida começar”, afirma ela.
E quando a pressão social cresce?
“Não se restrinja a nenhum tipo de pensamento ou roteiro”, aconselha Peter McGraw. “O bom é que existe, agora, um roteiro alternativo.”
De forma geral, o tempo sozinho é repleto de potencial e possibilidades.
“Acho que a solidão inspira um maravilhoso senso de criatividade”, segundo Emma Gannon. “Ela faz o cérebro funcionar e incentiva a solução de problemas.”
Ela sugere tratar a solidão como uma aventura, ou como uma possibilidade de se reconectar consigo mesmo, mantendo um diário ou se divertindo com os sentidos — “o cobertor macio, o som da música, o sabor dos alimentos. O que você pode ver, cheirar, tocar e sentir quando está sozinho?”
Voltar-se mais para dentro, segundo Cynthia Zak, pode aprofundar a sua compreensão da solidão. Ela sugere prestar atenção nos momentos de solidão e transformá-los em rituais recorrentes que ajudem no relaxamento e na reflexão com a prática.
“Pergunte a você mesmo o que você mais gosta em ficar sozinho”, aconselha ela. “Transforme o momento que você escolher em uma joia e atribua a você mesmo a tarefa de valorizar este espaço específico cada vez mais.”
E o mais importante e óbvio é misturar um pouco de cada coisa.
“Os seres humanos realmente precisam de interações sociais, mas eu também diria que eles precisam de solidão”, segundo Robert Coplan.
“Encontrar o equilíbrio certo é a chave para a felicidade e o bem-estar. Existe um equilíbrio diferente que irá funcionar para cada pessoa.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.
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Globo Repórter – Casados X Solteiros – 06/10/2023
Como ficar sozinho pode nos deixar mais felizes
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